Arranca hoje o congresso internacional IPRA-CINDER, com Portugal como anfitrião. O que significa esta escolha para receber o evento?
O facto de se realizar em Portugal, no Porto, um evento que dá palco ao conhecimento da área jurídica, boas práticas e inovação nos registos, é motivo de satisfação porque permite a partilha e o debate e reforçar o papel de Portugal como exemplo do que deve ser a evolução no domínio registal. Tem sido um trabalho ao serviço do cidadão e das empresas, com inovação e crescente transformação digital. O debate sobre estes temas, numa sociedade cada vez mais globalizada e tecnológica, permite trazer para um único espaço muito valor acrescentado e ideias que nos permitem a todos aprender e partilhar.

O país tem apostado na simplificação com a digitalização de processos de registo e a automação. Os dados revelados há uma semana mostram que 1 milhão de portugueses renovaram o cartão do cidadão automaticamente. Este tipo de serviço vai alargar-se a outras áreas?
O objetivo é precisamente alargar este modelo. A Administração Pública deve seguir o princípio do digital por defeito, transformar a sua própria administração não meramente através da digitalização de documentos, mas da simplificação, modernização e de um melhor serviço, tendo por base o digital. Na perspetiva do cidadão, é preciso garantir que apenas precisa de prestar informação uma única vez, competindo à administração pública partilhar essa informação, tendo sempre presente a necessidade de garantir a segurança e a privacidade. O objetivo passa por alargar este princípio de simplificação a vários serviços, no que chamamos o ciclo de vida do cidadão: desde que nascemos e até ao momento em que a nossa vida termina, relacionamo-nos com os serviços públicos, nomeadamente os registos. O nosso objetivo é que estes processos sejam desencadeados pela própria administração, desde a comunicação automatizada do nascimento, ou sempre que necessitamos de renovar documentos, fazendo-o automaticamente ou sendo o cidadão alertado para que tem de o fazer de forma proativa. A administração pública deve trabalhar com cidadãos e empresas nas várias fases para ir ao encontro as suas necessidades. Nos registos, já começámos a automatizar processos e o objetivo é que se alargue a outras dimensões, como mais comunicações automáticas para empresas e acesso a mais informação proativa que apoie o seu crescimento.
Outro exemplo em que este processo já foi iniciado e que queremos reforçar é o registo criminal. Para determinadas obrigações, por exemplo no caso dos profissionais que trabalham com crianças ou empresas que queiram ter acesso à contratação pública, é solicitado o registo criminal. Durante muito tempo, foi necessário ir a um balcão fazê-lo, hoje basta ir ao site fazer o pedido. Estamos ainda a trabalhar para alargar a comunicação automática, como já existe na educação, onde não é necessária intervenção do próprio, e o nosso objetivo é que o mesmo aconteça noutra dimensões no cumprimento da proteção de dados, garantindo que os cidadãos não têm de comunicar mais do que uma vez essa informação porque ela circula entre a administração.

E numa altura em que a proteção de dados e o ciber-risco ganham relevância, consegue assegurar-se a segurança destes processos?
A proteção de dados na administração pública é muito relevante e tem de estar salvaguardada. A segurança dos sistemas da justiça está a ser robustecida, garantindo a existência de redundâncias e outros fatores de autenticação mais fortes. Nesta dimensão, o PRR prevê um investimento de 101,6 milhões€ para Reforço das Infraestruturas e Equipamentos Tecnológicos da Justiça.
Face ao enquadramento atual, assumem ainda mais relevância a proteção de dados pessoais, em alinhamento com os direitos consagrados no RGPD e a segurança dos sistemas que suportam funções essenciais ao bom ambiente de negócios e ao funcionamento da justiça.
A confiança dos utilizadores de sistemas de informação é essencial para a adoção de soluções digitais. No caso específico da justiça, temos de ter em consideração não só os cidadãos e as empresas, mas todos os profissionais do registo e notariado, assim como funcionários judiciais e órgãos soberanos da justiça.
No que se refere à utilização dos serviços digitais, devemos pensar sempre que cabe ao cidadão permitir a circulação dos seus dados. A própria chave-móvel digital é um processo de autenticação mais forte que tem registado uma adesão crescente dos cidadãos. No futuro, também com a evolução do cartão de cidadão que vai ter um conjunto novo de funcionalidades físicas (vai incluir o NFC, de acordo com os regulamentos europeus) e digital que, em articulação com a modernização, está a ser trabalhada para que sejam disponibilizados mais fatores de autenticação e reforçada a sua segurança.
Como os casos mais recentes têm demonstrado, o principal fator de segurança são as pessoas e por isso estamos a implementar um plano de capacitação de todos os atores da justiça, focado em garantir que os vários stakeholders que atuam no ecossistema da justiça, conhecem os riscos e sabem atuar face a eles.

Além dos registos pessoais, as empresas podem beneficiar deste tipo de processos simplificados. Há novidades a esse nível? Em que áreas pode haver mais vantagens/poupança de tempo e recursos?
Em 2005, foi lançada a Empresa na Hora, o primeiro passo para simplificar essa dimensão. Se há área em que pode haver mais necessidade de desmaterialização e simplificação é essa. Estamos agora a trabalhar na Empresa 2.0, a capacidade de, no ciclo de vida das empresas, desmaterializar o processo e torná-lo mais fácil, cada vez mais digital. Precisamos de um serviço mais integrado, acessível no portal dos serviços públicos, o ePortugal, que precisa de evoluir e de ser robustecido. Estamos a fazer um trabalho articulado com as outras áreas governativas para garantir que o processo é fácil, e que antecipa os momentos de vida das empresas.

De que forma?
Por exemplo, nas declarações obrigatórias, como o registo central do beneficiário efetivo, que terá melhor experiência de utilização. Vamos também reforçar a desmaterialização de serviços para fundações e associações, que ainda têm de recorrer ao papel em certas obrigações.
Mas é ainda necessário capacitar a administração pública no sentido de contribuir para a competitividade do tecido económico, em Portugal e internacionalmente. Para isso, temos de garantir que estes processos são integrados, não se restringindo aos registos, num modelo verdadeiramente multilingue. O acesso a estes serviços deve ser feito da forma e no local que mais convém aos utilizadores, para que seja mais fácil criar ou até extinguir uma empresa em Portugal. Vamos reforçar a interoperabilidade com sistemas europeus para que estes processos sejam mais simples e contribuam para melhorar o ambiente de negócios a nível nacional.

De que forma pode a IA impactar estes processos?
Há muita integração de inteligência artificial nomeadamente na área das empresas. A Empresa na Hora, que tem um conjunto de nomes associados que permitem a criação rápida de uma sociedade, vai evoluir para que esses nomes possam ser trabalhados através da IA para que a resposta se adeque mais aos negócios em causa. Trata-se de usar machine learning para criar melhores propostas de nomes automatizados para sugerir às empresas. E vamos também alargar este processo ao serviço Marca na Hora - que atualmente é preparado manualmente por funcionários - para permitir uma alocação a tarefas de maior valor acrescentado. Uma vez que as atividades registais têm uma componente muito relevante de análise e verificação de informação, também aqui queremos que a IA possibilite uma melhor pesquisa de informação, mais automatização do trabalho, cabendo aos profissionais do registo a verificação final. No fundo, isto permite ajudar o decisor a chegar mais rapidamente à resposta. Há ainda IA a apoiar uma mais rápida identificação dos custos associados a determinados atos relacionados com empresas, permitindo decisões mais informadas e eficientes e uma melhor gestão de expectativas que, no final, vai contribuir para a sua competitividade.

E pode também ajudar a fixar recursos humanos na sua deslocalização para o interior?
O Balcão Único do Prédio é um dos exemplos de um trabalho que pode ajudar a assegurar a deslocalização para o interior. Ao valorizarmos e conhecermos o território podemos mais facilmente intervir ou planear sobre ele, gerar incentivos para que as pessoas possam fazer emparcelamentos, operações na área da reflorestação, criação de novas empresas, tudo isto focado na informação base: de quem é e onde se localiza a propriedade. O BUPi, que já funciona em 138 municípios e com a primeira parte em execução bastante avançada, permitirá disponibilizar uma camada para aumentar a atração do investimento. Pela primeira vez, a terra vai ter valor em Portugal. É algo muito relevante para um território mais atrativo e maior coesão. Neste caso, os registos têm um contributo valiosíssimo, porque não só é garantido o registo e a propriedade como há um processo de integração com administração fiscal, o ordenamento do território, a agricultura, os municípios e todas as entidades que se relacionam com o território.

Há uma dimensão internacional nesse trabalho, uma rede europeia de registos que simplifique?
Há, o facto de os registos serem mais simplificados, terem pontos de acesso ligado a bases de dados e portais europeus, utilizando autenticação forte com standards europeus, como é o caso dos mecanismos associados ao CC, retiram barreiras tecnológicas e custos de contexto na atração de investimento e criação de emprego em Portugal. Mas há outros exemplos. Tem vindo a ser empreendido um grande esforço de digitalização dos serviços de registos, diversificando o leque disponibilizado online e apostando em novas formas de prestação de serviços que facilitem a vida dos cidadãos e das empresas, em Portugal ou fora. Além da renovação automática, tem a possibilidade de apresentar online a declaração de nascimento de bebés dentro e fora do país e mais recentemente de, em simultâneo com essa declaração, apresentar o pedido do primeiro CC do bebé. Com a última expansão, esta medida passou a abranger as comunidades da diáspora portuguesa. Assim, os portugueses que vivam fora passam a poder pedir online o registo de nascimento, a nacionalidade portuguesa para os filhos e ainda o seu primeiro CC no Portal da Justiça, de forma gratuita e sem deslocações a Portugal ou ao posto consular. Depois do alargamento aos países da União Europeia, em novembro de 2021, o registo online de nascimento está disponível em todos os países de língua oficial portuguesa, em Macau e em vários países de língua oficial inglesa, francesa e espanhola, num total de 58.
Posso ainda referir a prática à distância de atos por conservadores de registos, oficiais, notários, agentes consulares portugueses, advogados e solicitadores. A plataforma de suporte à realização de atos autênticos, iniciou a primeira fase em modelo experimental para alguns profissionais identificados pelas Ordens e pelo Instituto dos Registos e do Notariado. Este novo serviço representa uma alteração de paradigma no modo como são realizados atos autênticos ou equiparados, permitindo evitar deslocações. Estou certo que iniciativas como estas criam um ambiente mais amigo para cidadãos e empresas que vivam ou se queiram fixar em Portugal, ou aqui queiram desenvolver uma atividade, independentemente do ponto do país onde se encontrem ou pretendam estar.

A digitalização é uma prioridade do PRR. Que tipo e volume de investimentos estão planeados nessas áreas e a que prazo?
O PRR é um instrumento muito relevante de financiamento para a área da justiça, implica uma reforma, que está em curso, na dimensão tanto do sistema judicial como na dos registos, porque vai permitir disponibilizar serviços mais eficientes. Há 267 milhões associados aos eixos Economia/Justiça e mais 55 milhões no eixo florestas para o cadastro. Este investimento vai tornar o processo mais fácil e impactante. E estamos a trabalhar em algo muito relevante que é a criação de mecanismos de verificação das principais reformas. A Comissão Europeia já tem vários mecanismos em curso de metas e indicadores associados, mas queremos ir mais longe e perceber de forma clara, monitorizando, os impactos destas reformas, a nível económico, de simplificação administrativa e satisfação dos utilizadores.

Será possível termos em breve uma espécie de página centralizada onde o cidadão possa aceder a toda a sua informação relevante a partir de um computador?
Está a ser feito um trabalho para disponibilização de um melhor serviço público, em articulação com diversas áreas governativas e coordenado pela Digitalização e Modernização Administrativa. A evolução do portal ePortugal, prevista no PRR, vai permitir centralizar esta informação, disponibilizada por todas as entidades que interagem com o cidadão de forma agregada. O objetivo é que seja simples para o cidadão perceber onde encontrar a sua informação, onde ter acesso aos serviços. Estamos coordenados para que, num único ponto de acesso, o cidadão possa aceder a informação e serviços digitais, de forma clara e simples.

joana.petiz@dn.pt